É difícil escolher qual o anúncio ideal para se abrir um texto que pretende informar que morreu Pelé. O correto é dizer que morreu o maior futebolista de todos os tempos, para se focar naquilo que ele fez de melhor, ao destilar o seu talento pelos campos do mundo? Ou melhor englobar mais, e dizer que se foi o maior esportista da humanidade, já que é difícil pensar noutro atleta que tenha encantado mais o planeta? Ou o correto é entender que Pelé superou os limites do esporte, e como somos seus eternos conterrâneos, noticiar que não está mais entre nós o maior brasileiro de todos os tempos?
Das dúvidas, a certeza que morreu aos 82 anos, vítima de complicações de um câncer no cólon, alguém que parecia imortal.
Do nascimento em Três Corações-MG, em 23 de outubro de 1940, à morte em São Paulo, em 24 de dezembro de 2022, Pelé fez muito para ganhar esse ar de imortalidade. A distância de pouco mais de 300 km entre a cidade em que nasceu e a que faleceu é curta se comparada ao tamanho da trajetória desse brasileiro que brilhou nos quatro cantos do mundo, campeão mundial com o Brasil na Suécia, Chile e México, e com o Santos em Portugal e também no Maracanã, no Rio de Janeiro. As duas Libertadores foram conquistadas em Buenos Aires.
Pelé: torcida do Santos em vigília na porta do Hospital Albert Einstein, pela melhora do Rei
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Por diversos campos do país, foram seis Brasileiros, dez Paulistas e três Rio-São Paulo conquistados também com a camisa do clube paulista. Entre clube e seleção, foi artilheiro de 18 torneios oficiais. Os 1.282 gols na carreira —variados, contra combinados e grandes seleções, mas três deles em finais de Copa do Mundo—, causam tanto espanto quanto incômodo em quem insiste em argumentar que houve alguém como Pelé. Não houve.
Honrarias, ordens, prêmios de mérito, recordes pessoais. Cargos, nomeações, homenagens. A lista de tudo aquilo que Pelé tem é imensa, e ainda assim, só resume aquilo que ele foi.
Porque quem o viu jogar se encantou de uma maneira em que não há lista —mesmo a que ele está no topo — capaz de transmitir o sentimento, o encanto.
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Especialmente nas Copas do Mundo. Se é difícil saber o enunciado ao falar de sua morte, também não é missão fácil escolher o que foi mais importante nas suas participações em Mundiais. Se é o espanto que causou no mundo quando, aos 17 anos, foi protagonista de um torneio que parecia só reservados aos adultos; se foram os três títulos, algo que nenhum jogador no mundo conseguiu conquistar; se foi a caça que sofreu em campo após virar um astro, e sua adaptabilidade para resistir em 1970; ou a maneira como eternizou a camisa 10, a amarelinha, o gesto do soco no ar e cada lance que habita a memória dos que viram e dos que não viram.
O que Pelé fez nas Copas — e também fora delas — o transformou, ao longo da História, em personagem fundamental na construção do Brasil no século XX. Pelé não popularizou só o futebol, mas também o Brasil. Ajudou o país a se encontrar com ele próprio.
Depois de uma passagem pelo Cosmos, em Nova York, e a aposentadoria real, Pelé ainda foi muitos. Ministro do Esporte, Embaixador da Boa Vontade da Unesco, Cavaleiro do Império Britânico, Embaixador da ONU de ecologia e meio ambiente, Doutor honoris causa da Universidade de Edimburgo. Tudo o que Edson Arantes do Nascimento foi em vida, mas que, agora na hora da sua morte, nos parecem todos menores do que simplesmente ser Pelé.
TOPSHOT – Paris Saint-Germain (PSG) and France national football team forward Kylian Mbappe (R) and Brazilian football legend Pele pose during their meeting at the Hotel Lutetia in Paris on April 2, 2019. (Photo by FRANCK FIFE / AFP) — Foto: AFP
Ser Pelé também significou ser comparado. Desde o seu surgimento, surgiram vários novos Pelés, brasileiros e estrangeiros, e a maioria nunca chegou aos pés da majestade do futebol. Dois argentinos foram os que mais desafiaram quem topava esse desafio, esse debate— ainda que em alguns momentos o próprio debate parecesse desafiar a lógica. Encantando o mundo há quase duas décadas, o recém-campeão Lionel Messi parece ser quem mais chegou perto, ainda que em outro tempo da bola. Seu antecessor, o polêmico Diego Armando Maradona, foi o grande rival pelo cinturão de “melhor de todos os tempos” que, na verdade, nunca saiu de perto do brasileiro.
Assim como o Deus argentino, o Rei brasileiro se mostrou falho e conviveu com polêmicas e erros em sua trajetória de vida, como a filha não reconhecida e a aproximação —ou falta de crítica —à Ditadura Militar.
Vítima do racismo várias vezes durante a vida, Pelé também conviveu com críticas sobre sua postura em relação a ele. Sabedor de que posições mais fortes não eram bem vistas para um produto de marketing, no qual conscientemente tinha se tornado, Pelé evitou qualquer postura mais combativa. Usava sua relevância para pautas sociais como a paz ou direito das crianças, mas ficava à margem do preconceito racial.
A mudança do mundo que acompanhou os 82 anos de vida de Pelé, porém, o fizeram se adaptar. Já em 1994, ao assumir o Ministério do Esporte no Governo FHC, pediu para que negros votassem em negros. Mais recentemente, aderiu ao movimento #BlackLivesMatter, após a violenta morte do americano George Floyd.
— A gente precisa dar ao Pelé o lugar que ele merece. É preciso reler sua história com os olhos que a História nos oferece, não apenas com base nos posicionamentos dele — disse Angélica Basthi, autora do livro “Pelé, estrela negra em campos verdes”, no aniversário de 80 anos do Rei. — Ele é um mito dentro do futebol. E esse mito é um homem negro com todas as suas complexidades.
Após um longo tratamento contra o câncer e uma última internação de 30 dias, Edson Arantes do Nascimento morreu ontem, no hospital Albert Einstein, em São Paulo. Ele deixa sua companheira Márcia e sete filhos. Mas Pelé e seu mito, como eles muitas vezes, seguem completamente vivos.